segunda-feira, 30 de julho de 2012

Old school (rescaldo laico 2)

Continuando com o rescaldo da Laica desta vez incidindo em fanzines gráficos e de poesia, confirmando a estranha energia que atravessou esta última edição do evento.
Sendo a sua estreia no mundo da auto-edição - embora já tenha sido publicado no Futuro Primitivo com os retratos mutantes dos autores que participaram na antologia, João Paulo Nóbrega lançou o graphzine Daydrawings que compila alguns desenhos deste autor que afirma desenhar um rabisco por dia. Sem uma prática artística de experiência ou formação, Nóbrega é uma espécie de naive mas que não se circunscreve nos temas naives: animazinhos, paisagens, coisinhas bonitinhas... Os temas são "factos orgánicos" (usando uma expressão para definir o Malus) com construções surrealistas e geométricas que lembram (em alguns casos pelo grafismo) o imaginário de João Chambel e André Lemos. Formato A5 em 22 páginas, coisa modesta para começar...

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Dildo Doodles) de Ana Menezes não é realmente uma adaptação de textos de Freud mas uma interpretação gráfica em que a autora muda de estilo de desenho como os materias da capa mudavam de exemplar para exemplar - como latex, lona, veludo, enfim, materiais "kinky"... desde que sempre preto com um recorte de máscara S/M.
O terceiro capítulo é o mais erótico com uma sequência S/M cujo estilo gráfico lembra vagamente algum tratamento do finlandês Marko Turunen faz a algumas personagens. Formato quadrado sexy!

Por falar nesse capítulo as ilustrações também entraram no número zero do Nicotina'zine, que é um zine de poesia que reúne material poético de um grupo de escritores - incluíndo o "nosso" Rafael Dionísio - mas também alguns desenhos e uma BD! Uma BD do sueco Lars Sjunnesson (que há uma década participou no Mutate & Survive, mundo pequeno!). A5, excelente apresentação e design, Nicotina'zine será uma lufada de ar fresco à bafienta cena lisboeta, espero que sim mesmo que o nome indique o contrário... Entretanto o Dionísio voltou a fazer um mini-zine A6 de poesia, Escavações Arbitrárias segue os formatos de refúgios e alguns slides que editou no final dos anos 90. Fez 41 exemplares que deverão esgotar rápido, é melhor contactá-lo!!!

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Elas lêem mais do que eles...

Moravagine : Nyctalope (Phaco; 2011)
v/a : Liga dos Últimos (Zerowork + Your Poison; 2012)


Não sei o que deu nos Punks - deve ser mesmo falta de ideias - de que nos últimso tempos começaram a dar nomes de canastrões e xungas às suas bandas, tipo Chuck Norris, Charles Bronson, etc... E como estamos em Portugal como não temos bestas com armas e punhos de ferro, ficamos pelos futebolistas como o Chalana que já teve direito a uma canção dos Clockwork Boys e agora a um EP de 7" com quatro bandas de Punk nacional. Não sei se é homenagem - o que é péssimo, pensava que o Punk pedia às pessoas para pensarem e não alinharem com o "pão e circo" - ou se é iconoclastia - o que também não me parece assim tão fascinante.
Ainda assim, é Punk / Hardcore pujante que sabe bem - com uma cervejinha e tremoços? Pela primeira vez gostei dos Acromaníacos, será porque é uma versão de Crise TotalFacção Opposta e Albert Fish fazem o que tem a fazer, e a surpresa do disco são os Canhões de Guerra mais pesado e rápido do que os outros, cheios sangue na guelra. É preciso ter cuidado com os Canhões!
Mais cultas são o power-trio punk de francesinhas Moravagine que vão buscar o nome a um livro de Blaise Cendrars (1887-1968) e que mostram ter mais unhas para tocar que os 'tugas com o seu crossover que lembra vagamente D.R.I. ou Suicidal Tendencies com o peso imagético inevitável do movimento riot grrrl. Fizeram um potente vinil 10" com uma capa da Caroline Sury com 8 temas que em alguns casos até fogem à normalidade do punk. Lê-se mais e vê-se menos bola em França... Em Portugal podem pedir este disco à Associação Terapêutica do Ruído.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Génova não acabou!












Foi uma situação inédita no Festival Crack deste ano, pela primeira vez o Festival saiu do seu Forte e foi ao centro de Roma fazer uma intervenção. Sob o âmbito de um projecto artístico sobre o "desenho é de todos" ou a "Arte é de todos" que será apresentado na Bienal de Berlim, o Centro Cultural Suiço convidou à "crew" do Crack para fazer uma intervenção. O Crack adoptou como tema sobre as manifestações anti-globalização que aconteceram em Génova em 2001 que recentemente tiveram desenvolvimentos inesperados.
Para quem não se lembra, a intervenção policial nessa manifestação foi tão brutal ao ponto da Amnestia Internacional ter considerado a "maior suspenção de direitos humanos na Europa ocidental desde a segunda guerra mundial". Além de terem morto Carlo Giuliani e toda a violência típica dos Cães do Estado (seja em que regime for) ainda torturaram manifestantes nas prisões. 10 anos depois os tribunais italianos deram penas leves aos poucos polícias identificados e penas maiores aos manifestantes presos - entretanto alguns em liberdade com vidas e carreiras após 10 anos dos acontecimentos. Para saber mais: 10x100.it

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Electrónica oferecida...

Nos últimos meses ofereceram-me discos de forma inexplicável, se calhar da mesma forma quando ofereço livros, zines e discos quando aparecem encomendas ou vendas nas "feiras laicas"... Apenas porque gosto de divulgar coisas "diferentes" e porque (mais especificamante) farto de as ter em casa paradas. Arte e Cultura são para seguir em frente ao encontro de alguém!

Autopoiesis (Small Voices; 2004) é um picture-disc dos Troum , dupla germânica de Drone Music, gente conhecedora do que faz antes da moda deste tipo de música.
Usando o termo científico "autopoiesis" para realizar a música deste disco - mais tarde reeditado em formato CD - as quatro faixas são "auto-organizadas" nelas próprias, isto as suas estruturas repetem-se ou excertos de umas encontram-se noutras, sendo a separação entre "produto" e "produtores" quase ténue. No fundo pretende-se mostrar a "música" como um organismo vivo, auto-suficiente e autónamo.
Este organismo mostra-se tão psicadélico e mutante como a rodela que o abriga. Mostra que música Drone não precisa ser chata como tanta gente faz.
Dankas very muchas ao camarada Fernando Cerqueira, mestre Antibothis por esta bela peça fonográfica.

O Amigo Fom Fom andou pelo Oriente e não ficou doente. Descobriu que os orientais, pelo menos prós lados chineses não ouvem música a toda a hora como cá. Um bálsamo diria... Tentem encontrar uma esplanada que não se tenha de gramar com a porra dos Gotan Project ou House - enviem-me um e-mail a precisar onde fica esse paraíso, sff! Ele bem queria trazer-me um disco de Macau mas era tarefa díficil... lojas de discos é coisa do passado se é que alguma vez houve naquelas bandas. O pouco que se vê em algumas lojas tem aspecto tão vomitante que ninguém merece levar com aquilo. Já não me lembro em que circunstâncias encontrou o CD-single Sleepinghead (auto-edição, 2010) do Scorpio-L mas sempre encontrou algo. Lembra Gary Numan sem o groove mas com mais glitches e glam... São apenas dois temas no disco, o tema-título e a versão instrumental. Sabe a pouco, claro...

Por fim, o grande Travassos deu-me O art, where Art thou? (Divis Slovakia; 2010) dos eslovacos Voice Over Noise - um trio de "laptroopers" que seguem as direcções "phunderphonics" fundadas pelos Negativland e John Oswald com as suas devidas distâncias. Aqui não se chega à crítica social e política dos Negativland nem à repetição dos loops de Oswald - embora hajas mais semelhante com este do que os primeiros, basta ouvir o "loop" minimalista do Lemmy dos Motorhead em So what is with you para lembrar Oswald. Há "culture jamming" de ter astros Pop misturados com os altos estetas da música "erudita", como dizem algures Madonna com Varèse ou a banda sonora de um videojogo com Bach. Nada que provoque choques na Era do "Cut/Paste" sem no entanto de deixar de ser divertido e ter capacidade de criar ambientes peculiares.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Tri-Neuro-News

I. O colectivo artístico romeno The Church, ao qual participa Neuro já têm um sítio oficial em linha: biserika.ro - a última entrada mostra a instalação que nos fez para o festival Crack deste ano.

II. O autor também tem em linha as fotografias dos murais que realizou numa "hostel" em Copenhaga, cidade onde reside: dreamdealers.tumblr.com

III. E já que falamos da neuro-instalação no Crack eis algumas fotografias nossas:



Mattias Elftorp e Marcos Farrajota
 

Martin Lam López e Marcos Farrajota


Neuro e M.U.C.S.


segunda-feira, 23 de julho de 2012

PARIS XVI: CRUMB REGURGITADO



Goste-se ou não de admiti-lo, a história da banda desenhada tem sido marcada, em boa parte, pela discussão do seu estatuto artístico. Associada às tecnologias de reprodução em série e ao entretenimento das massas, tudo indica que a banda desenhada ainda não logrou libertar-se — ao contrário da fotografia e do cinema, acrescente-se — do estigma de uma certa menoridade estética. Prova disso é a retrospectiva da obra de Robert Crumb actualmente em exibição no Musée d’art moderne de la ville de Paris (no 16º Bairro), intitulada Crumb: De l’underground à la Genèse, comissariada por Sébastien Gokalp. Tamanha iniciativa poderia, em princípio, ser encarada como uma forma de contornar a ansiedade em torno deste problema, mas a verdade é que mais parece contribuir para prolongá-la. Já a primeira grande retrospectiva de Crumb, organizada em 2004 pelo Museu Ludwig, em Colónia, o manifestava abertamente através do seu título: Robert Crumb: Yeah, but Is It Art? Embora mais subtil, o título da presente exposição descreve um percurso das margens até ao centro do cânone ocidental igualmente evocativo do complexo de menoridade acima referido. Por outro lado, ainda antes de entrar na primeira sala, o visitante depara com um aviso explicando que as ilustrações e pranchas de Crumb foram essencialmente concebidas para serem impressas, pelo que muito do que aqui se mostra corresponde, na óptica do artista, a um estádio intermédio e incompleto da sua produção. Reencontramos aqui um velho imbróglio das exposições de banda desenhada (O que expor exactamente?), e que certamente tem dificultado a sua consagração pela via das artes plásticas.
Mas adiante, que o verdadeiro apreciador não se desmotiva por tão pouco. Ao longo de várias salas, é possível conhecer uma parte importante da obra de Robert Crumb, desde o início dos anos 1960 (as cartas ilustradas que ele enviou para Marty Pahls, os cartões postais humorísticos realizados para a empresa American Greetings, os desenhos relativos a uma viagem à Bulgária publicados na revista Help) até à actualidade (as mais de duzentas pranchas da sua adaptação do Livro do Génesis), sem esquecer as viagens alucinantes que marcaram o movimento hippie e underground de finais de sessenta (Zap Comix e afins) e a partida para o Sul de França, um quarto de século mais tarde (as histórias autobiográficas em conjunto com a sua mulher Aline, desenhos em toalhas de restaurante e outras curiosidades). Ao todo, mais de setecentas pranchas expostas, número que torna humanamente impossível a sua apreciação integral e que obriga o visitante a ir deixando coisas de parte, sacrificando enfim a sala dedicada ao Livro do Génesis, por demasiado fastidiosa, para consagrar mais tempo aos tablets contendo reproduções de cadernos de esboços transformados em livros (por exemplo, The Adventure of Long John Silver, de 1962). Por outro lado, a sala dedicada ao percurso musical de Crumb, nomeadamente os discos que gravou com os Cheap Suit Serenaders, fará pensar nas ligações íntimas mantidas por tantos autores de banda desenhada com a música popular. 


Acerca do processo de produção de Crumb, dos seus métodos e materiais, pouco se adianta — muito provavelmente por não haver muito para dizer, embora este seja um dos tópicos mais promissores para uma exposição de banda desenhada. Estamos, em todo o caso, em presença de um ilustrador compulsivo, que passou a vida a rabiscar em blocos, tendo desenvolvido um estilo elaborado e que, ao mesmo tempo, praticamente dispensa o esboço: os primeiros traços, impressivos e nervosos, são posteriormente confirmados através de tramas densas e contornos reforçados, ou então são corrigidos pela aplicação pontual de manchas de tinta correctora. O efeito final é bem conhecido e já foi suficientemente elogiado. Mas sobrevém, igualmente, uma impressão de limitação decorrente do apego a formatos relativamente pequenos e às canetas de tinta da china Croquill. Sob este prisma, é perceptível uma desproporção entre a extensão da obra exposta e a plasticidade da mesma.


Enquanto desenhador, Crumb afigura-se capaz de retratar convincentemente qualquer motivo, mas é clara a sua predilecção pela figura humana, que ele procura dissecar, por dentro e por fora. A frontalidade com que expõe as suas obsessões, os seus fantasmas, as suas fraquezas tem suscitado as mais diversas reacções. Trata-se de caricaturar as fobias e preconceitos que pontuam a experiência de uma identidade de género hegemónica, descrevendo aquilo que o poder (masculino) faz mas não diz que faz. Aqui ou ali, o jogo torna-se ambíguo. E, no geral, previsível. Bem mais surpreendente acaba por ser o seu trabalho de designer evidenciado em diversas capas de revistas, na colecção Heroes of the Blues, nos fanzines, nas cartas e, claro, nos diversos cadernos ilustrados. Acima de tudo, Crumb foi um artesão de brochuras — correspondendo estas ao estádio finalizado da sua produção e que, neste caso, fica fora do alcance, exposto por trás das vitrinas ou confinado ao ecrã dos tablets. À saída, aproveita-se para dar uma vista de olhos no catálogo, mas a extrema fidedignidade das reproduções que nos devolvem o amarelento do papel em que foram desenhadas certas pranchas ou ilustrações mais antigas põe de parte qualquer hipótese de compra. Mais vale reconsiderar The Complete Crumb Comics, da Fantagraphics.

domingo, 22 de julho de 2012

PARIS, RUE DANTE


Rue Lagrange

O visitante nostálgico atravessará o adro de Notre-Dame concedendo não mais que um olhar apressado às gárgulas da majestosa catedral e, enfiando pela pequenina ponte Au Double, entrará na margem esquerda pela Rue Lagrange, a qual percorrerá, de preferência pelo lado do jardinzinho da praça René Viviani, até atingir uma bifurcação. Aí, tomará a rua da direita e ver-se-á na Rue Dante, toponimicamente associada à poesia mas vivendo da comercialização de literatura ilustrada. É uma rua pequena, com pouco mais de cem metros, mas onde se podem encontrar lojas de banda desenhada e ilustração praticamente para todos os gostos
Abrindo e fechando a rua, as livrarias Rackam e Aapoum Bapoum! são verdadeiros paraísos para bibliómanos e colecionadores de preciosidades da indústria franco-belga: a primeira com as suas estantes repletas e ordenadas de A a Z; a segunda, mais informal, com algumas classificações interessantes (‘Chaland e a linha clara pós-moderna’, ‘Em torno de Humanoïdes’, ‘Verdadeiramente velha escola’…) e uma lista cuidada de ofertas especiais (por estes dias, era possível adquirir a edição integral de Jeune Albert por apenas 15 euros).

Banca exterior da livraria Aapoum Bapoum, com algumas das ofertas da semana

Mudando de agulha, os apreciadores de manga e ilustração japonesa têm à sua disposição as lojas Hayakushop e Little Tokyo, enquanto Gotham e Pulp’s Comics se dedicam aos super-heróis. Pelo meio, mencione-se a Pulp’s Art, vocacionada para livros de ilustração artística e design, mas que nos últimos tempos tem vindo a consagrar mais espaço à banda desenhada, maioritariamente importada dos Estados Unidos. Há ainda lugar para uma livraria mais convencional e reflectora dos padrões hodiernos do mercado, Album, onde só valerá a pena entrar para adquirir qualquer edição mais recente.
Rue Dante, vista do Boulevard Saint Germain

Cumprido o percurso, desembocando no Boulevard Saint Germain, o visitante insatisfeito terá ainda algumas opções. Virando para a direita poderá tentar a segunda livraria Aapoum Bapoum! (14 Rue Serpente), a cinco minutos de distância: embora maior que a sua filial da Rue Dante, parece mais focada na produção mainstream. Virando para a direita e subindo na primeira oportunidade até à Rue des Écoles (paralela ao Boulevard Saint Germain), o visitante espreitará a Paginaire, no número 10, igualmente especializada na escola franco-belga, para de pronto seguir para a Librairie Lutéce, um pouco mais acima (5 Rue d’Arras), digna concorrente de Rackam e Aapoum Bapoum!, com amplo depósito e preços em conta.

No Boulevard Saint Germain...

Conforme se depreende, sob pretexto algum deverá o colecionador de tais raridades tomar parte em acto de compra e venda antes de terminado o percurso que ora se giza para, na devida posse de todas as informações necessárias, poder decidir e arrematar a melhor oferta, retornando se for caso disso à Rue Dante. De saco cheio, o visitante atravessará uma vez mais o Sena, apontado aos cafés de Châtelet em Happy Hour. Recomenda-se o Petit Châtelet, no começo da Rue de Saint-Denis, onde poderá conversar sobre a arte na sociedade de consumo com o filósofo desenhador Jerôme (um dos habitués) e desfrutar do bom acolhimento dos barmen (em especial do português Sérgio, antropólogo e apreciador de fotografia, prestes a iniciar uma nova aventura na Austrália). De espírito animado e músculos retemperados, o visitante continuará o seu percurso subindo a Rue Saint-Denis, ao sabor dos encontros…
E a banda desenhada alternativa, L’Association e quejandos? E as edições independentes, os fanzines? Sim, neste capítulo, é parca a oferta da Rue Dante e demais artérias. O visitante deverá ficar pela margem direita, acercar-se da Bastilha e, daí, apanhar a Rue de Charonne, experimentando a BDnet ou, sobretudo, a Pied deBiche, no número 86. Ou, mais para norte, mas demasiado longe para se continuar a pé, a Le Monte-en-l’Air (2 Rue de la Mare, num dos extremos do 20º Bairro). Tradição ou revolução: À vous de choisir!

Contactos:

sábado, 21 de julho de 2012

BUENOS AIRES DEPOIS DO APOGEU

Cidade de muitas livrarias, Buenos Aires não desaponta no que à banda desenhada diz respeito. Mas também não deslumbra. O colecionador proveniente da Europa poderá demorar-se na livraria Enteléquia, sita no número 341 da Avenida Uruguay, onde encontrará vários exemplares das revistas que marcaram o período dourado da historieta argentina, de Hora Cero ou Misterix (anos 1950-60) até Hierro (anos 1980), tudo devidamente fechado em invólucros de plástico, etiquetados com preços mais ou menos acessíveis. Os clássicos de Oesterheld estão igualmente disponíveis em livro, em particular os que resultaram das parcerias com Solano López (Eternauta I e II, pela Doedytores) e Alberto Breccia (Sherlock Time, Mort Cinder, pelas Ediciones Colihue, menos apelativas por causa das suas capas uniformes em tom laranja). O problema começa quando se pergunta pela banda desenhada argentina actual, em especial os trabalhos de pendor mais alternativo ou experimental. Em livrarias como a Enteléquia ou a Club del Cómic, a amostra é reduzida, para não dizer inexistente, sendo abertamente menosprezada pelos funcionários em proveito das velhas glórias entronizadas. E torna-se complicado tropeçar em pontos de venda de fanzines e edições independentes, mesmo para quem disponha de alguns dias para calcorrear as longas artérias que cruzam o Microcentro, em especial as duas margens da Avenida Corrientes entre Callao e 9 de Julio. Mas eles existem, claro: por exemplo, a galeria LDF, no fascinante bairro de San Telmo (Avenida Perú, 711), que todavia não tivemos oportunidade de visitar.
As notas que se seguem são, por isso mesmo, esparsas, resultando sobretudo das informações e materiais disponibilizados pela ilustradora Muriel Bellini. Há pelo menos duas editoras a ter em conta: La P!nta e Burlesque. O catálogo da primeira é reduzido, consistindo numa meia dúzia de livros em formato comic, com boa apresentação, podendo ser facilmente encontrados em livrarias como a Enteléquia. Já as Ediciones Burlesque editam brochuras em formato A6, mais próximas do circuito dos fanzines e, como tal, mais difíceis de descobrir. Em qualquer dos casos, o que se edita são maioritariamente autores argentinos, mas não só (Burlesque tem colaborações provenientes da Suiça ou da Holanda, entre outras). Berliac será porventura o nome mais projetado da nova geração. Se Rachas (La P!nta, 2009) nos apresenta um conjunto de histórias ‘de romance e mistério’ ilustradas a traço grosso e com muitas sombras, aqui ou ali fazendo lembrar Muñoz, DGMW / Devil Got My Woman (La P!nta, 2011) afirma-se como realização de maior fôlego, onde o autor desenvolve um registo subtil e original, de traço parcimonioso de modo a gerar um efeito de desenho ‘inacabado’ que na verdade se complementa em manchas de um cinzento desbotado, aplicadas com mestria. A história, com argumento de Damián Connelly, relata as investigações de um jornalista em torno do bluesman Nehemiah Curtis ‘Skip’ James, contendo admiráveis enquadramentos inspirados nos cenários naturais do delta do Mississípi.

Connely & Berliac, DGMW

Para além do craque Berliac, a seleção de banda desenhada argentina apresenta outros recursos dignos de nota, como o humor extravagante de Ernán Ciriani, servido com um traço desleixado e bastante idiossincrático (vários trabalhos publicados no fanzine peruano Carboncito); ou as narrativas autobiográficas de Ezequiel García, num estilo que nos recorda o melhor de Marcos Farrajota, tanto a nível gráfico como textual (Llegar a los 30, Emecé Editores, 2007; e aventuras subsequentes, também em Carboncito); ou ainda as atribulações domésticas de Camila Torre Notari, em especial a sua produção a preto e branco (Es Miserable, No?, Burlesque Ediciones, 2010; e outros trabalhos em Carboncito); e, para finalizar, os super-heróis surrealistas de Fran López (Súper, Burlesque Ediciones, 2010). É caso para dizer que, se em tempos o melhor da historieta argentina girava em torno de naves espaciais e extraterrestres (com a notável exceção dos argumentos de Oesterheld desenhados por Pratt), a inspiração contemporânea é mais terrena mas, igualmente, bem mais variada.

Ernán Ciriani, 'De como os Conquistamos', Carboncito 13 

 Ezequiel Garcia (sem título), Carboncito 13 

 Camila Torre Notari, Es Miserable, No? 

Fran López, Súper


Sites & blogs
www.ldfgaleria.blogspot.pt                                                                                           

Contactos:
Galeria LDF: ldf.galeria@gmail.com
Muriel Bellini: murielbellini@gmail.com
Burlesque Comics: burlesquecomics@gmail.com
Ezequiel García: ezeqgarcia@hotmail.com

sexta-feira, 20 de julho de 2012

LIMA PROLÍFERA

É difícil resistir à tentação das delimitações nacionais quando se trata de falar da banda desenhada e da ilustração de outras paragens que não os Estados Unidos ou o eixo franco-belga ou o Japão, e isto mesmo quando as intenções do divulgador pretendem ser tudo menos folclóricas. O que se procura, com tais enquadramentos, é desvendar uma cena local, intuindo laços de amizade e colaboração, adivinhando regimes de produção e circuitos de divulgação que podem dar azo, assim se pensa, a formas específicas de absorver e digerir as influências estéticas provenientes dos grandes centros, criando estranhas erupções e alimentando redes que atravessam países e podem mesmo tornar-se, à sua maneira, globais. O caso do Peru e, em especial, da sua capital, constitui um bom exemplo. Se a produção clássica e de grande tiragem ficará claramente aquém da argentina ou brasileira, os circuitos alternativos contemporâneos da historieta peruana exibem uma formidável vivacidade. Em termos editoriais, Lima oferece pelo menos dois núcleos aglutinadores que de algum modo vão refundindo o melhor da banda desenhada e ilustração autoeditadas: o das Ediciones Contracultura, de Benjamin Corzo, com livraria aberta no número 986 da Avenida Larco, distrito de Miraflores; e o do fanzine Carboncito, editado pelos irmãos Renso e Amadeo Gonzales, onde publicam regularmente os autores mais influentes do Peru e países circunvizinhos (Renso pode ser encontrado na livraria de um pequeno centro comercial situado no número 295 da Avenida Alcanfores, que corre paralela à Avenida Larco). Outro aspecto relevante do contexto limenho, e que no fundo atesta a sua sintonia com as correntes alternativas globais, tem a ver com a hibridez entre banda desenhada e ilustração, nalguns casos abarcando também a pintura ou o design, noutros a música e a performance.

Lima, Peru

E quem são eles, os novos ilustradores peruanos? Uma primeira amostra teria de considerar os relatos autobiográficos de Jorge Pérez-Ruibal, publicados entre 2004 e 2006 no fanzine Trulópolis e posteriormente reunidos no volume Bestia (Ediciones Contracultura, 2008): uma sequência de episódios curtos de cunho realista turvado por uma boa dose de psicadelismo, exibindo recursos narrativos variados, apuro gráfico e, sobretudo, assinalável versatilidade estilística. Numa linha semelhante, as ficções suburbanas e decadentes de David Galliquio, autor prolífico mas evoluindo quase sempre dentro do mesmo registo meticuloso e denso, preenchendo o branco da página com padrões cruzados, manchas de pontinhos e balões de texto, devidamente inspirado na melhor banda desenhada underground (veja-se o fanzine A Mosca e as várias contribuições nos números de Carboncito ou Crashboomzap). Num outro comprimento de onda, mencionem-se as experimentações poéticas e existenciais de Jesús Cossio no fanzine Ciudades Convertidas en Selvas, a que se juntam trabalhos mais estruturados e, sobretudo, fortemente politizados, como Barbárie: Comics sobre Violencia Política en el Perú, 1985-1990 (Contracultura, 2010).

Jorge Perez-Ruibal, Bestia 

 David Galliquio, 'Lito El Perro en...', Carboncito 8

Jesús Cossio, Ciudades Convertidas en Selvas, nº 2

Os irmãos Gonzales têm direito a uma menção especial pela sua notável actividade editorial à frente do fanzine Carboncito, que se afirma como um excelente ponto de partida para quem quiser conhecer melhor o universo dos comics latino-americanos. O seu trabalho artístico é, contudo, igualmente digno de nota. Renso Gonzales reflecte sobre desventuras de amor em historietas de persuasão autobiográfica (incluindo as protagonizadas por um possível alter ego denominado Patrick, publicadas nas páginas de Carboncito), revelando-se ainda como ilustrador expressivo e explorador dos ambientes da metrópole limenha em Ilustración Desconocida (Carboncito Ediciones, 2007). Amadeo sobressai como primoroso retratista, cultor de uma estética linear-sintética versada em metamorfoses e desconformidades, ideal para estampagem em autocolantes e crachás, e que pode ser saboreada no fanzine Horrible y Divertido (2011) e em muitas outras contribuições na publicação que dirige com o irmão Renso. Para além disso, Amadeo Gonzales é músico e cantor de rocanrol, tendo editado, também em 2011, o CD Mostros Marcianos Y Rocanrol.

Renso Gonzales,  La Ilustración Desconocida

Amadeo Gonzales, Horrible y Divertido

Não sendo o objectivo deste post o de traçar um panorama completo, ficamo-nos por duas referências finais. A primeira diz respeito a Rodrigo La Hoz. O seu Islas (Contracultura, 2010) é uma história vertiginosa envolvendo sessões de psicoterapia e adivinhação, relações homossexuais masculinas, alucinogénios naturais (cogumelos e mel de vespa), ansiedades em torno da procriação e um avião que se despenha em cima da casa do protagonista. Tudo se passa em Lima e arredores, numa narrativa atravessada por diferentes escalas e dimensões, que vão do microscópico e do subterrâneo ao grande plano aéreo, sem esquecer diversos momentos de devaneio. A segunda referência diz respeito a Manuel Gomez Burns, certamente um dos mais virtuosos desenhadores peruanos da atualidade, que se detém sobre os códigos do cartoon e da banda desenhada vintage para baralhá-los e redistribui-los com resultados surpreendentes, elegantes e engenhosos (vejam-se as suas experimentações gráficas em torno das onomatopeias, publicadas em Carboncito e também no blog do autor).

Rodrigo La Hoz, Islas 

Manuel Gomez Burns, 'The Theater of the Sounds and the Eyes' Carboncito 14

Mesmo sumária, esta amostra chega para compreender que os quadradinhos e a ilustração proliferam sob o céu branco da capital do Peru.
                                                                                                                                                                
Sites & blogs:

Contactos:
Livraria Contracultura: libreriacontracultura@hotmail.com
Amadeo Gonzales: amadeo77@gmail.com
David Galliquio: davidalberto699@hotmail.com
Jesús Cossio: graficos777@gmail.com
Jorge Pérez-Ruibal: resinapower@yahoo.com
Manuel Gomez Burns: magomezburns@yahoo.com
Rodrigo La Hoz: rodrigolahozs@gmail.com

ÚLTIMA HORA : ccc@poetry.slam.sul!!! SIM, HOJE!


pois, vamos estar lá com as nossas edições! apareçam!!! + info aqui

quarta-feira, 18 de julho de 2012

New kids on the block (rescaldo laico 1)

Se houve algo de incrível na última Feira Laica foi a quantidade de novidades editoriais que foram lançadas, algumas de artistas que nunca se esforçaram no mundo da edição independente, outros que já não faziam nada há algum tempo e claro os novos autores a apresentarem-se ao mundo. Começamos por aqui, então.

Na realidade já tinha sido lançado na última edição do Comunicar:Design - e andei para escrever sobre a meses à espera de uma ocasião... Deathgrind é um zine A5 que compila desenhos e BDs de Zé Burnay. Já com trabalho espalhado aqui e acolá, este novo autor parece-me uma nova esperança na estagnada BD portuguesa. Para já largou as influências mais óbvias em grande parte pela mudança do material de desenho - a linha dos trabalhos deste zine é finíssima - e sobretudo por explorar as maravilhas do mundo da narração. Nessa deambulação volta à vulgaridade porque chafurdar no mundo Pop só se pode ir parar a lugares-comuns mesmo quando entram em peso Satanismos light, drogas de todo o tipo, Blues cheios de crime e toda a mítica "Americana". É provável que este zine venha a ser um marco de transição de Burnay-autor-de-BD, para já é uma publicação a solo divertida cheia de energia mas o melhor está para vir. Estejam muito atentos!

Não tão "kid" como isso mas até parece, David Campos, avançou (mas não apareceu na Laica para montar a sua mesa) com um novo título Landing of the Mothership #1 que é uma nova série de BD (apesar de ainda não ter concluído as outras) com um novo selo editorial, Bábamúpeace - é de esquecer a Paracetamol, pelos vistos.
16 páginas A5 apenas de fotocópias manhosas, quase parece um zine dos anos 90 de tão pouco cuidado gráfico, temos dentro delas uma BD de auto-ficção que envolve primatas e "roswellitas" mas como a BD é tão curta - são apenas 8 páginas -  não se chega a perceber nada nem mesmo a envolvermo-nos com isto. Terá alguma piada esta treta? Pode ser que sim mas não sabemos - curiosamente é exactamente a mesma resposta que se pode dar à pergunta "existem OVNIs?"
Boy, um bocado mais de consequência, se faz favor!

Ninguém pára este mambo! O sexto número do Lodaçal Comix (Ruru Comix) até saiu antes da Laica, com mais ou menos a pandilha de sempre - há sem malta nova a fazer algo, como o Rui Ricardo que fez uma atraente capa vintage / pulp. E há uma descoberta bastante boa chamada André Pereira que impressiona pelo virtuosismo gráfico e narrativo, e que confunde coordenadas - as influências dele são os franceses psicadélicos da Metal Hurlant ou hispánicos manhosos da Cimoc ou é mesmo xungaria indie sci-fi norte-americana? Já lá iremos...
Aaron $hunga faz uma homenagem ao falecido Moebius, Afonso Ferreira avança prá conclusão do alucinante Lovehole, e o Rudolfo continua apaixonado em auto-biografia tola... É o Lodaçal.

E o Rudolfo não pára, não só instiga autores a produzir como ele próprio produz e prepara uma série, o Magical Otaku. Bom na realidade o borbulhento "nerd" (um otaku na cultura japonesa) já há muito que tem aparecido em episódios espalhados em zines do Rudolfo. A diferença entre esses episódios e este novo, é que o novo ao contrário dos outros atira-se a uma humanidade que antes não havia. Os episódios anteriores eram apenas escárnio a miúdos doentes e viviados em toda uma cultura Pop repugnante - toda a cultura Pop é repugnante diga-se, daí o fascínio que nos exerce.
Neste novo episódio algo acontece - que não poderei contar caso contrário não compram os zines - que poderá significar uma mudança no trabalho do Rudolfo, algo mais equilibrado, fora das parvoíces escatológicas e das ainda mais parvas BDs autobiográficas (sero)positivas "Rudolfo in love".
A completar a edição algum material bónus como mais um massacre do Musclechoo e uma foto do primeiro cosplay do autor (um mimo!).

A grande surpresa da Laica deste ano foi o zine Enjôo de Invocação (Robô Independente) de André Pereira. Como todos os outros zines, não foge à regra A5 mas com capas coloridas para todos os gostos.
Compila a produção de BD do autor que aparece de forma extraordinária com um grafismo apurado e e uma narrativa consistente. Como já tinha referido mais acima - sobre a BD publicada no Lodaçal e aqui repetida - não percebo se o autor gosta de Eduardo Risso ou Druillet ou algum norte-americano da Image que não me lembra o nome. Entretanto lembrei-me também do Al Columbia e do Jorge Coelho... Bom parece haver uma ligação entre as BDs O Demiurgo e Cigarros que espero que venha a ser mais desenvolvida... Pá, é impressão minha ou este zine tem um ISBN? O pessoal passa-se...